quarta-feira, abril 25, 2007

A ditadura vocal

Mais um sobre música.

E então o sujeito compôe um tremendo conjunto de canções, e canções (Lieder, chansôns, canzones, seja em que língua for) são como poemas recitados - entende-se que hajam liberdades artísticas, e quem o recita necessariamente não encarna o personagem como em uma montagem cênica, (árias e afins fazendo parte de um contexto operístico onde o caráter das vozes é imperativo na construção da caracterização - as vozes precisam ser diferentes entre si. Deve haver um exagero de definição).

Porém, muitas vezes estabelece-se uma ligação entre o caráter de um compositor/período específico com tipos/caráteres de voz, e normalmente o que é especulação se torna lei por maioria de votos (ou de 'concordos').

Aconteceu uma coisa engraçada esses dias - Der Erlkönig (O Rei dos Elfos) de F. Schubert, é uma canção conhecida pela sua complexibilidade artística.

O cantor representa quatro papéis em uma única canção (o de narrador, pai, filho e o mitológico referido) enquanto descreve a perseguição do Rei dos Elfos, uma entidade misteriosa, pelo filho de um viajante a cavalo que cruza uma floresta à noite.

É um trabalho fantástico, que coincidentemente foi cantado de forma fabulosa por Jessye Norman, o gogó de ouro dos EUA. A senhora descreveu com primor os quatro envolvidos na canção, e a gravação da mesma ficou emblemática.

Até então eu entendia esta canção como ''uma canção para vozes de soprano pesadas", e muitas pessoas discutiam no tema com certeza disso.¹

Porém, algo estranho aconteceu: Eu consegui uma outra gravação, mais antiga, e ainda mais característica - Um tenor!

Um tenor cantava a mesma narrativa sobre o Rei dos Elfos! Ninguém menos que Fritz Wunderlich!

Agora a pulga havia se instalado atrás da minha orelha - Fritz não foi exatamente um subversivo na música, apesar de ter explorado sem pudor muitos repertórios.

Mas ele não foi um cantor renomado por peças densas e épicos. Era o típico tenor lírico - giocoso e elegante.

Então eu me reencontrei com a lógica, e me lembrei de um velho hábito dos cantores: O preconceito.

Retornando à simplicidade?
Ao invés da pesquisa fundamentada, ou mesmo do uso de um pouco de ousadia, a grande maioria das pessoas prefere simplesmente ouvir e aceitar de quem (parece que) entende das coisas.

Assim o foi com os Lieder de R. Strauss, as chansôns de Debussy... Ambos entendidos por um sem-número de pessoas como 'adequados para vozes pesadas'.

Ora - se em nenhuma edição das referidas canções você encontra dedicatórias a intérpretes das referidas vozes, ou indicações expressas, fica difícil entender o porquê.

Muitas vezes conseguimos extrair o caráter de uma peça pelo seu texto, pela sua estrutura musical, mas quando a coisa entra em contradição é difícil não questionar.

Barbara Booney, uma soprano americana, de voz levinha, cantou um conjunto enorme de canções de R. Strauss lindamente, inclusive as quatro últimas (troféus para sopranos que adoram cantar com grandes orquestras) - mas caiam - tudo a voz e piano. E ficou lindo.

Chego a uma conclusão: Repertório tem-se definido assim - nos últimos 50 anos uma grande soprano cantou muito bem tal conjunto de peças, então entende-se grosseiramente que "é para aquele tipo de voz", simplesmente porque naquela voz específica, sob um trabalho e uma ótica individual, soou bem. E fica por isso mesmo.

O engraçado é que sopranos pesados cantam praticamente qualquer coisa², e sopranos leves normalmente se limitam na vida de metralhadorinha, no eterno barroco, ou qualquer coisa que seja excessivamente ornamentada.

Tem alguma coisa muito estranha acontecendo aqui... Convido cantores e cantoras a pensar duas vezes antes de aceitar qualquer imposição da conquista do próprio repertório.

Transponha! Estude! E com certeza de cem pelo menos uma deve soar bem! Antes de aceitar qualquer impressão que não seja a sua, experimente.

É sabido que a mediocredade é uma das pedras no sapato de qualquer um que queira destaque na vida. É não ter senso crítico é um grande sintoma disso.

(E antes de tudo lembrem-se do que inspirou o compositor - o poeta! É isso que importa no final das contas! É isso que o público quer! Comunicação! Preciosismo só serve pra crítico musical. E pra que serve um crítico musical?)
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¹:
Apesar da própria Jessye Norman, para muitos, não ser exatamente soprano, mas não emito opiniões sobre a voz dela, não me interessa se ela é baixo profundo, adoro ouvi-la.

²: Porque existe o 'dramático coloratura', mas não existe o ligeiro 'wagneriano', entende?


O porquê do soprano: Quando fala-se em 'soprano', existe um seríssimo frisson no assunto, pois era como se o tímbre fosse uma espécie de 'caixinha das divas'. Existe uma super estima exagerada em sopranos e tenores. Mas muito especificamente em sopranos. Vide ópera verista, bel canto, e a loucura européia pelos castrati há alguns séculos e então me questione.

2 comentários:

michelito disse...

lendo seu blog me senti numa aula interessante sobre assuntos nos quais a gentes conhece pouco [tah, desconhece totalmente, vai! rs], faz uma cara de paisagem fingindo que entendeu tudo.
Mas alguma coisa no seu íntimo faz querer saber mais, enxergar numa outra ótica e, no fim das contas, percebe que o troço nem era complexo como pensava. Legal!

michelito disse...

Soh pra fazer um levíssimo comparativo entre cantores, especificamente os líricos, que vc abordou e todas as outras coisas dessa vida...
ateh, companheiro blogueriano!